A lei, ora a lei! Imaginem todos os nossos Mestres
de Capoeira obrigados a fazerem faculdade de Educação
Física para poderem nos ensinar!

No Brasil há leis que são escritas, votadas e, no entanto, “não pegam”, como o artigo V de nossa Constituição: “Todos são iguais perante a Lei”. Por outro lado existem as que, apesar de nunca terem sido escritas, se tornam a expressão da pretensa "malandragem brasileira", do "jeitinho brasileiro", e todos querem seguir, como a “Lei de Gerson", jogador de futebol campeão do mundo (Copa de 70) que, ao divulgar determinada marca de cigarros, proferiu o slogan "O importante é levar vantagem em tudo, certo?". "Certo!", concordaram os "espertos". Afinal, priorizar os próprios interesses em detrimento do coletivo passou a ser uma postura "legítima" do individualismo, acirrada na atualidade pelo avanço do neoliberalismo.
Para podermos refletir sobre a questão acima se torna necessário fazermos algumas considerações sobre a Lei 9696, de 1998 que pretendia subordinar a prática da Capoeira e de outras manifestações culturais à fiscalização dos profissionais de Educação Física, subordinados ao CONFEF (Conselho Federal de Educação Física).

Certa feita, (como ele mesmo diria) em uma palestra em Florianópolis, quando indagaram a respeito de sua opinião sobre a possibilidade de cumprir-se essa Lei, o Mestre Lua de Bobó, depois de coçar o seu cavanhaque e de muito pensar, respondeu: “pega todos os mestres velhinhos, entre os quais eu me incluo, e manda matar todos eles. Quem estaria agora, aqui ensinando Capoeira para vocês?Seriam os catedráticos? E eles, iriam aprender com quem? Se hoje estou aqui agradeço a esses mestres, pois foi através da capoeira que eles me ensinaram, que eu tenho a oportunidade de conhecer outros países como os EUA, a França, a Espanha, etc.”

Um profissional de Educação física, nada tem a ver com as características da capoeira. Ele ficaria inteiramente perdido se tivesse que ensinar a tocar berimbau; ou que tivesse que esclarecer o que é a mandinga, que exige vivência e conhecimento que transcende a sua competência de educador físico. Mesmo a ginga, que é a base de qualquer capoeirista, e os outros golpes que derivam dela, regem-se por princípios inteiramente diferentes dos exercícios de ginástica. Além disso, há a parte histórica, que todo bom capoeirista deve dominar, e não seria o profissional de educação física quem melhor poderia transmitir esse tipo de conhecimento.

Não há, portanto, como subordinar essa atividade holística que é a capoeira, caracterizada por uma metodologia que procura associar música (cantar e tocar instrumentos diversos) com movimentos do corpo, com conhecimento histórico e que exige pressupostos filosóficos (posturas diante da vida) aos parâmetros da educação física e submetê-la à fiscalização de profissionais que não detém sequer noções dos fundamentos desta atividade.

È do nosso conhecimento que existem capoeiristas que são formados em Educação Física, assim como há capoeiristas que são professores, historiadores, filósofos, engenheiros, médicos, etc., no entanto nenhum desses profissionais dispensam o conhecimento, a técnica que a dedicação de toda uma vida a esta arte, proporcionou aos Mestres de Capoeira.Com outras palavras, mas com a mesma preocupação é que se pode ler no Projeto de Lei no 7370, de 2002, de autoria do deputado Luiz Antônio Fleury Filho:”{...}Porém, esta lei não autoriza o CONFEF a intervir em outras áreas de expressão artístico-cultural, espaços próprios e há muito consagrados pela ação e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira{...}”

Sendo assim, esse Projeto acrescenta Parágrafo Único ao artigo 2o da referida lei, dispondo: “não estão sujeitos à fiscalização dos Conselhos previstos nesta Lei os profissionais de dança, capoeira, artes marciais, yôga e Métodos Pilates, seus instrutores e academias.”

A relatora desse projeto de Lei, deputada, Alice Portugal, considera que antes de dar o seu parecer, esse tema foi alvo de inúmeros debates e discussões no âmbito da Comissão de Educação e Cultura. Foi dentro deste contexto e acatando os argumentos tanto dos grupos envolvidos como o do próprio deputado, ( que cita a nossa Constituição) que ela votou a favor da emenda, relatando: “{...}excluindo no âmbito de fiscalização do Confef as atividades desenvolvidas pelos profissionais de Dança, Capoeira, Artes Marciais, Yôga, a quem fica assegurada a possibilidade de definir, de maneira autônoma, a melhor forma de estruturar suas próprias organizações e de fiscalizar os seus profissionais{...}”

Dentro deste contexto é que a relatora passa a fazer uma análise das peculiaridades de cada uma das atividades, ofícios e manifestações culturais e artísticas às quais o CONFEF reivindica a tutela de sua fiscalização, acreditando que assim seria possível por termo à questão.

Destacamos aqui a capoeira, por ser objeto de nossos estudos e de nossa prática. De acordo com o documento a capoeira é uma manifestação cultural popular, originariamente brasileira, além de ser um excepcional sistema de auto-defesa constitui-se em um misto de luta-jogo-dança, símbolo da resistência dos negros à escravidão e uma afirmação de suas origens.

Muito antes de haver profissão de educação física, a capoeira já era praticada em nosso país, particularmente na Bahia, como um gesto de identidade cultural que serve aos afro-descendentes e aos cidadãos brasileiros como arte, ofício e importante meio de inclusão social.

Citando os elementos históricos que fizeram da capoeira, principalmente, na sua origem, uma luta de resistência, a autora estabelece ainda que essa atividade ao reunir todos os elementos que a tornam única possui: “{...} uma excepcional riqueza artística, melódica e dinâmica; um enorme potencial evolutivo e, finalmente, uma gama intensa de aplicações esportivas, coreográficas, terapêuticas, pedagógicas, etc., que abrange desde o simples jogo às franjas das artes marciais e da defesa pessoal.”

Diante disso, torna-se muito clara a autonomia da capoeira, que com sua especificidade se impõe como área do conhecimento, com pessoas autorizadas e aptas a definir e conduzir seus próprios destinos (por isso são chamados de Mestres) e determinar parâmetros para avaliar a competência de seus praticantes.

Por Luisa Helena Stipp Malusá
Graduada em História e Ciências Sociais
Mestre em Filosofia da Educação
Autora do livro “Abrindo Caminhos, História,
Comunicação e Arte”